quinta-feira, 23 de abril de 2009


23 de Abril
- DIA MUNDIAL DO LIVRO -


O ProjectoLer associa-se às comemorações do Dia Mundial do Livro, lembrando que a melhor forma de celebrar o livro é lê-lo.

Assim, e tal como anteriormente agendado, sugerimos a leitura da obra de George Orwell - Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, e convidamos aqueles que aceitarem a nossa sugestão a quebrar a rotina do serão televisivo, trocando-o por um café com palavras.

Na semana em que se faz o balanço de trinta e cinco anos de democracia em Portugal e se preparam os discursos do 1º de Maio, parece-nos ainda mais oportuno reflectir sobre o conceito 'Big Brother is watching you', a sua vulgarização na nossa sociedade e a constante fiscalização dos gestos mais banais do nosso quotidiano.


Até 4ª feira, quando brindaremos 'ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros e não vivam sozinhos' (George Orwell).




sexta-feira, 10 de abril de 2009


A PÁSCOA REVISITADA POR SARAMAGO

Aconteceu, finalmente, e depois de sucessivos adiamentos, a primeira sessão do PROJECTOLER. Tal como havia sido ‘projectado’, trocaram-se leituras em torno da obra Ensaio sobre a Cegueira[1], de José Saramago. A escolha deste autor para a sessão inaugural de um ‘momento’ que se deseja partilhado, participado e repetido, resulta de um conjunto de evidências que só por mero exercício tautológico se enumeram: o fôlego humanista, logo universal, da escrita de Saramago, que lhe permitiu não só ser um nome maior das nossas letras, mas também nas letras de outras latitudes; a peculiaridade desse fôlego se traduzir em imagens que despertam a consciência do leitor, acordando-o dessa espécie de dormência a que o cumprimento dos rituais socialmente impostos conduz e, como consequência, a interrogação constante dos ‘mitos’ fundadores da nossa humanidade – a compaixão, a generosidade, a verdade e, claro, o seu inverso.
Ensaio sobre a Cegueira ilustra tudo isto de forma intensa, por vezes crua, quando, por exemplo, nos impõe a imagem violentíssima de um cadáver humano a ser devorado por uma matilha de cães; ou sempre que nos obriga ao sabor agridoce das metáforas que ocupam filosoficamente o homem, o de hoje como o de ontem:
“Com o passar dos tempos (…) acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas (…) fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca.” (op.cit.p.26)

Lembrando a velha máxima que advoga ser possível pelos olhos chegar à alma, o romance, anunciado ensaio sobre um “mal branco” contagioso, assemelha-se, na opinião de alguns dos leitores presentes, ao testemunho de uma caminhada expiatória da humanidade, no sentido cristão do termo: a humanidade, pecadora porque arrogante, ambiciosa e cada vez mais distante dos valores éticos e morais idealmente orientadores das práticas sociais, é submetida a uma cegueira semelhante a um denso nevoeiro, que obrigará os seres humanos a uma espécie de via sacra, conducente a um calvário crescente de impotência, insegurança e medo. Confinados a um ‘purgatório’ onde são sujeitos à humilhação, à depravação e à mais abjecta convivência entre pares, confrontam-se com a dualidade que os caracteriza – ora capazes dos maiores rasgos de generosidade, ora de matar um seu semelhante – para concluírem que só cegando vêem, de facto, quem são, o que são.
Terá tal caminhada sido redentora?
Fazendo eco da dúvida das personagens, também nós perguntámos:

“ Por que foi que cegámos, Não sei, talvez uma dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêm.” (op.cit.p.310)

Termina, assim, a obra em causa, deixando a pergunta essencial sem uma resposta conclusiva, instigando-nos a cumprirmos o conselho inscrito em epígrafe – “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
A propósito de uma possível ‘moral da história’, alguém destacou a seguinte passagem de Ensaio sobre a Cegueira como a imagem súmula da mesma: “a mancha negra do sangue, e outra pequena tocando-a, branca, do leite que se entornara” (op.cit.pp.91/ 92). O sangue, negro, vindo das entranhas do homem, representaria o instinto, a face mais oculta e interior do ser humano, e aqueloutra mancha, embora mais pequena, mas de uma alvura comparável à da cegueira que atacou a humanidade, acaba por tocar a negrura espessa do sangue e iluminá-lo, dotando-o da luz e da razão que lhe faltavam, permitindo ao homem, então, alcançar a verdade e libertar-se das duas cegueiras – a da alma (velada, oculta) e a dos olhos (agora mais nitidamente os tais “espelhos virados para dentro”) que revelou a primeira ao acender uma luz na escuridão.
Esta impressão, que todos os que vemos temos, quanto ao breu em que vivem os cegos é revogada pelo testemunho de um outro autor – Jorge Luís Borges – ‘convidado’ por um dos leitores presentes que, amavelmente, nos traduziu o seguinte excerto do texto “La ceguera”:


Uno de los colores que los ciegos (o en todo o caso este ciego) extrañan es el negro; outro, el rojo (…) me molestó durante mucho tiempo tener que dormir en este mundo de neblina, de neblina verdosa o azulada y vagamente luminosa que es el mundo del ciego (…) El mundo del ciego no es la noche que la gente supone (…)”[2]

Noutro âmbito da discussão sobre este ‘ensaio’, alguém questionou o facto de ser uma mulher a única pessoa a não ter cegado. As opiniões dividiram-se. A ala mais ‘feminista’ frisou que, ao contrário de outros autores canónicos, Saramago não tem qualquer pudor em destacar as mulheres nos seus romances, tornando-as co-protagonistas, senão mesmo as verdadeiras heroínas, lembrando-se, a propósito, essa personagem quase ‘fantástica’ de Memorial do Convento – Blimunda.
Como exemplo contrastante, Eça de Queirós e a sua famigerada misoginia foram evocados, tendo este autor encontrado no nosso anfitrião o seu principal defensor e cuja intervenção foi tão oportuna, que está oficialmente convidado a integrar o ‘séquito’ do PROJECTOLER, como, aliás, estão todos os que gostarem de ler e de argumentar sobre a leitura, quer das obras seleccionadas, quer de outras e dos autores que, como se ilustrou, vão sendo convocados, pois, e de acordo com a vox populi, ‘as conversas são como as cerejas’ ou, numa versão mais adequada à época pascal, como as amêndoas.
Na agenda do PROJECTOLER, as próximas ‘amêndoas’ serão degustadas dia 29 de Abril, e o ‘cordeiro’ sacrificado será a obra 1984, de George Orwell.

Até lá, BOAS LEITURAS!


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[1] Saramago, José. Ensaio sobe a Cegueira. 12º edição. Lisboa: Caminho (para as citações transcritas)
[2] Acedido em http://profesorgarrocha.blogia.com