segunda-feira, 27 de dezembro de 2010


Os Filhos da Meia-Noite,
Salman Rushdie

29 de Setembro-
12ª 'Leitura'

Sabíamos ser necessário um fôlego maior para ler aquela que é considerada a obra prima de Rushdie e uma das mais importantes da contemporaneidade literária (foi Prémio Booker em 1981; Booker dos Bookers em 1993, prémio com que voltou a ser distinguida após auscultação aos leitores em 2008). Assim, levámo-la na bagagem de férias de verão e foi com ela que assinalámos a rentrée do nosso 'clube'.

A noite estava ainda morna, no final de Setembro, pelo que à volta da mesa da esplanada e sob o efeito da cafeína, fomos relembrando os episódios fantásticos da vida de Saleem Sinai e da sua família, entrelaçados com a História da própria Índia. Viajámos pelo exotismo dos lugares descritos; contemplámos a mestria do autor no domínio dos materiais da escrita; o exercício metaficcional; a pretensão concretizada de usar o código de modo singular; a forma peculiar de manipular as coordenadas espacio-temporais, ao ponto de tornar próximas e familiares realidades culturalmente tão distantes como aquelas da Índia e do Paquistão:
Um nariz-aspirador? Lirismo em torno de uma 'bosta'? Um jogo intitulado 'acertar-na-escarradeira'? Um herói com dons telepáticos que é também uma espécie de 'bobo'?
E a lista de 'excentricidades' podia alongar-se em uníssono com a voz do narrador:
«a promessa de exotismos futuros sempre me pareceu o melhor dos antídotos para as decepções presentes!»

Também nós nos poderíamos alongar no comentário à obra magistral de Rushdie, mas como sempre fazemos questão de frisar, as notas que aqui partilhamos servem apenas como pretexto para evidenciar o trabalho operado sobre e com as palavras, o impulso criativo, o 'engenho e a arte' dos autores e criadores literários que vamos projectando ler.

«E aprendi a primeira lição da minha vida: ninguém pode olhar o mundo de frente se tiver os olhos constantemente abertos»

Até à próxima ... página.

Boas leituras!

domingo, 26 de dezembro de 2010


'E se perdêssemos a face humana? ou
o Complexo de Édipo revisitado'
Junho de 2010 -
11ª Sessão de leituras 'projectadas'

É com considerável hiato temporal desde o serão dedicado à leitura do Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar que registamos aqui as impressões trocadas sobre essa obra singular de Mishima. Por isso, talvez o relato desse par de horas corresponda melhor ao comentário subentendido do que ao comentário real. Quer isto dizer que onde a memória falhar, acudirá a ficção.
Assim, 'se bem me lembro', era uma noite 'pós-são joanina' e Mishima foi servido muito ocidental e 'alentejanamente' em prato raso ornamentado com secretos de porco preto e 'baquicamente' acompanhado. Cumprindo a tradição que a época exige 'homenageámos' os santos ditos populares, degustando a fêvera do suíno e tentando chegar ao tutano do romance de Mishima. Neste, apesar da forte presença dos códigos orientais da honra, da disciplina e da ordem, consegue-se extrair aquele sabor agridoce , intemporal e transversal às diferentes tradições culturais, no que diz respeito à descrição dos acessos de cólera que instigam a imaginação dos adolescentes de qualquer parte do mundo, contra os adultos (no caso, o adolescente é um jovem órfão de pai que vai compilando as fraquezas do candidato a seu padrasto, que é então o adulto 'bode -expiatório' dos «complexos de inferioridade, aspirações não realizadas, frustrações e ressentimentos» dos pais e dos adultos em geral).

A narrativa centra-se na figura de um adolescente , Noboru, e do bando a que pertence , cujo objectivo é lutar contra aquilo que os torna essencialmente humanos: a paixão e suas ambiguidades.
Desapaixonarem-se, perderem a afectuosidade, eis o propósito dos adolescentes que aspiram a conseguir instaurar uma nova ordem que ponha cobro ao caos social e ético vigente, de modo a que o ser humano jamais sinta infelicidade, solidão ou desapontamento... nem o seu contrário: «ficar curioso seria visto como uma estupidez, uma vez que estavam a praticar a 'ausência de paixão absoluta'.»
Sucintamente, a personagem central é-nos revelada nos seguintes traços: «Aos treze anos, Noboru estava convencido do seu próprio génio (cada um dos outros do grupo sentia o mesmo) e tinha a certeza de que a vida consistia em alguns símbolos e decisões simples, que a morte ganhava raízes no momento do nascimento (...) que a reprodução era uma ficção; logo a sociedade era também uma ficção; que os pais e os professores, por serem pais e professores, eram culpados de pecados terríveis. Logo, a morte do seu pai quando ele tinha oito anos, fora um incidente feliz, algo de que estar orgulhoso».

No fundo, Mishima explora as contradições da alma humana, neste romance polarizado pelos adolescentes que recorrem a 'rituais de passagem' da infância para a idade adulta, sacrificando o outro pólo - um marinheiro caído em desgraça aos olhos cruéis e desapiedados dos jovens, cuja agilidade intelectual sem o freio da experiência de vida conduz a conclusões 'arrepiantes' como as que se transcrevem, fundamentando a utilidade da brasa que a sabedoria popular evoca naquele adágio que recomenda que se guarde o melhor tição para o mês de S.João:
«Se não agirmos agora, nunca seremos capazes de roubar, ou matar, ou fazer qualquer das coisas que testemunham a liberdade de um homem. Acabaremos a vomitar mentiras, passaremos os dias a tremer de submissão, no compromisso e no medo (...) e um dia casamo-nos e temos filhos, e depois tornamo-nos pais, a coisa mais odiosa que existe à face da terra!»

Bem... a adolescência é só uma fase...passa, certo?!

Boas leituras...populares, santas ou profanas, mas , preferencialmente, apaixonadas.