domingo, 27 de setembro de 2009


21 de Setembro –
O Conde d’Abranhos



Uma ‘rentrée’ nunca vem só!

Na véspera do Outono, uma semana após o início das aulas e a meio da campanha eleitoral, também nós regressámos às leituras, esmiuçando (sim, confessamos que a maioria dos membros do nosso ‘nano micro mini’ clube de leitura decidiram o sentido do voto consoante a prestação dos diferentes candidatos no programa que os ‘Gato Fedorento’ apresentam, diariamente, na SIC) O Conde d’Abranhos, obra capital de Eça de Queiroz no que ao uso da ironia e da sátira concerne.

Juramos que não foi intencional esta escolha literária, pois quando decidimos ler “a mais contundente crítica romanceada (?) da intriga política constitucional” (J.Saraiva e O. Lopes) nada fazia supor que tal só acontecesse agora, nos pós ‘silly-season’ eleitoral. O nosso primeiro post prova a nossa inocência!

Como estamos a publicar estas linhas no dia de todas as reflexões, não iremos para além da análise da obra em causa e qualquer paralelismo com a actualidade política será mera coincidência!

Não podemos ler O Conde d’Abranhos sem ter em conta que o mesmo é, em primeira instância, uma paródia a um género ‘clássico’ – o panegírico
[1]. Como tal, a biografia de Alípio Abranhos é-nos relatada pelo seu secretário – Z. Zagalo – narrador de dupla-face: aparentemente, o admirador embevecido e incondicional do Conde; essencialmente, a voz subtil da crítica à sua falta de carácter, personificando assim o ‘carrasco’ mavioso, tal como o entende João de Barros (ver nota de rodapé).

E eis que temos um Alípio oriundo de famílias humildes, instruído em Coimbra graças à fortuna da madrinha abonada, mas que renega as origens, envergonhado da rudeza dos modos paternos face aos tiques requintados da burguesia de quem, por força da ambição política, se torna conviva assíduo. Consegue com essa intimidade a conveniência de um casamento que lhe dá título e reconhecimento social e, apoiado pelas novas e influentes amizades, inicia um percurso que o levará ao poder.


Porque é no ‘circo político’ que o Conde mais se destaca, deixemos o rol de exemplos que Zagalo nos concede sobre a sua conduta (i)moral, para citarmos os momentos mais elucidativos quanto à sua ética:

- sobre o povo: «porque se há-de combater um monstro invencível, quando é tão simples iludi-lo»

- sobre a arte de ‘iludi-lo’ I: «Tal é a tradição humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um país com o aplauso do cidadão e em nome da Liberdade!»

- sobre a arte de ‘iludi-lo’ II: «Não podemos dar ao operário o pão da terra, mas obrigando-o a cultivar a fé, preparamos-lhe no céu banquetes de Luz e de Bem-aventurança!»

- sobre a arte de ‘iludi-lo’ III: «Eu, que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente soberania ao Povo, que é forte e simples. Mas, como a falta de educação o mantém na imbecilidade e o adormecimento da consciência o amolece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito. E quanto ao seu proveito…adeus, ò compadre!»

E, de facto, o ‘nosso’ Alípio Abranhos chega ao poder, embora ‘virando a casaca’, ou seja, mudando de partido, porque isso lhe permitia trotar para Belém, «repoltreando-se nas almofadas do poder!» Não hesitou em «passar-se com as suas armas da eloquência e a sua bagagem de saber para o campo inimigo. Ia fazer-se oposição!»

Explica-nos Zagalo que muito injustamente a «este grande acto político foi chamado uma indecente traição. Nada mais absurdo. Pergunto eu: que é trair? É abandonar os ideais de que se serviram, e passar, sem razão, para os ideais opostos que até aí se combatiam. (…) Mas havia entre os Reformadores e os Nacionais ideias opostos?»

E o que se segue é a mais divertida lista de argumentos que tentam provar que não havia nem em Religião, nem em Moral, nem em Economia Política, nem em Administração, nem em Pedagogia qualquer diferença entre um e outro partido!

Afinal, e como um dos nossos membros frisou, não é de hoje que os partidos políticos são ‘uma pequena família incestuosa’!

O mais notável é que Alípio Abranhos conseguiu tornar-se ministro, embora tivesse sido, e segundo o seu fiel (?) secretário, um «avaro intelectual» por nunca ter exteriorizado as muitas ideias que, com certeza, tinha!

Após a troca de impressões sobre o magistral uso da ironia que Eça faz neste seu romance e das inevitáveis referências a outras obras suas, ficámos a tentar descortinar nos diferentes candidatos a PM os mais parecidos com Abranhos, mas não conseguimos decidir-nos. Não é que ficámos com a impressão de que Zagalo estava certo quanto a não haver diferenças entre o partido que governa e os partidos que se lhe opõem?!

E agora calamo-nos e prudentemente vamos reflectir, porque amanhã assinamos em X.

O ProjectoLer recuperará o Direito de Antena em Outubro!


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[1] Palavra derivada do grego, cujo sentido geral é o dum discurso, em prosa ou verso, em louvor duma pessoa, acontecimento, lugar ou objecto. Desde a Grécia antiga, e sem interrupção até ao declínio da retórica no século XIX, o panegírico foi o mais puro expoente da oratória epidíctica ou demonstrativa. A função do panegírico foi sempre política. O objectivo era estimular nos ouvintes ou leitores o desejo de emulação das virtudes louvadas no discurso. Isto cumpria-se geralmente, colocando perante o receptor uma imagem ideal dele mesmo. Toda a ênfase do panegírico recaía sobre os valores que estavam supostamente na base da prática governativa da pessoa em causa. Por isso, João de Barros, um dos mais importantes panegiristas portugueses, sugeria que a eloquência laudativa se dirigia em geral aos homens que não mereciam louvor. É que os tiranos, detentores discricionários do poder, não podiam ser censurados ou criticados frontalmente, não apenas por causa das consequências nefastas daí resultantes para as pessoas dos autores, mas também porque isso não traria efeitos positivos sobre o curso da governação.

ALVES, Hélio, s.v. "Panegírico", E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, (Setembro 2009).