terça-feira, 26 de maio de 2009

Big Brother is watching you’



- 2ª Sessão do grupo de leitura PROJECTOLER –

Porque no ‘principio era o verbo’, iniciámos a segunda sessão destes nossos encontros para café com livros em amena cavaqueira sobre a nova tendência de viajar: o ‘couchsurfing’. Em síntese, ‘couchsurfing’ designa a procura, na Internet, de um anfitrião generoso que ceda o sofá da sala para que o viajante possa pernoitar. Afirma quem já experimentou que é a forma mais espontânea e genuína (e, já agora, mais barata) de conhecer os hábitos e as rotinas dos povos visitados.

‘So far so good’, que é como quem diz, até aqui tudo bem, mas e Orwell? Era o autor de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro um ‘couchsurfer’? Se o termo à época já fosse corrente, talvez, mas o verdadeiro ponto de encontro da obra de Orwell com o tal conceito de viagem agora em voga está no elemento tecnológico que partilham – a rede.

Efectivamente, um dos aspectos mais intrigantes da obra sob auscultação é o seu poder premonitório, uma vez que antecipou, em cerca de cinquenta anos, um cenário tão assustador quanto real – a constante ‘fiscalização’ dos actos mais banais de cada cidadão. Em nome de uma aparente segurança, cada um de nós vê a sua rotina constantemente vigiada e a sua privacidade ameaçada, quando abastece o carro nas estações de serviço; quando passa na portagem da auto-estrada; quando se dirige a qualquer instituição bancária; ao utilizar o cartão de crédito; ao admirar a montra de uma ourivesaria; ao deambular pelos recantos dos centros comerciais; nos aeroportos; nos bares, discotecas e demais locais de diversão nocturna, enfim, é quase impossível escapar à sentença Orwelliana do ‘Big Brother is watching you’.

Também na obra de Orwell tal vigilância se processa em nome da segurança, desta feita, da segurança de um certo statu quo, logo de uma determinada ideologia. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro surge como crítica ao estalinismo, e embora o regime se tenha desvanecido, a obra em causa continua actual, pois a electrónica invadiu as nossas vidas e submete-nos a uma ‘supervisão’ tão invasiva, que sem dificuldade conseguimos transpor a crítica aos regimes totalitários da época para a aparente democracia que o liberalismo e a ideia de globalização encerram.

O romance de Orwell põe em causa todo um sistema ideológico, indiferentemente se de esquerda ou de direita, pois qualquer regime que concentre numa elite o poder de decidir, organizar e manipular a verdade (na obra até a própria ‘verdade histórica’ se torna figura de estilo, porque os dados, estatísticos ou outros, são revistos e substituídos por aqueles que melhor se ajustem aos propósitos de doutrinação do partido no poder) revela-se, na sua essência, totalitário, desumano e mercenário, ao ponto de inscrever na fachada do suposto Ministério da Verdade o lema:

«GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA» (p.32)

Paradoxal?
Sim. E aterrador para aqueles que decidam pensar por conta própria, incorrendo no ‘crimepensar’ que a Polícia do Pensamento’ tratará de «varrer da existência e da memória» (p.33), como acontece à personagem principal da obra, que no seu diário datado de 1984 evoca a nostalgia de um tempo «em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros e não vivam sozinhos – a um tempo em que a verdade exista e o que for feito não possa ser desfeito», para concluir que nos saúda «da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplopensar» (p.33)

Ao lermos isto, pareceu-me que todos nós – leitores de Orwell de dia 5 de Maio de 2009 – nos inquietámos pela semelhança desse tempo virtual com o tempo real, e com a possibilidade de dizermos como a personagem do romance: «Nada nos pertencia, excepto os poucos centímetros cúbicos dentro da nossa cabeça» (p.32). Os mesmos que o ‘partido’ quer à força invadir, conquistar, tomar para si, porque o «poder autêntico (…) não é o poder sobre as coisas, mas sobre os homens»:


«Como é que um homem afirma o seu poder sobre outro homem?
- Fazendo-o sofrer –
- Exactamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como posso eu ter a certeza de que obedeceu à minha vontade e não à dele?» (p.267)

Arrepia de tão crua e lúcida a resposta.

Num compasso de espera para retomarmos a discussão e na sequência das ideias trocadas, um dos presentes partilhou com os restantes a sua memória de uma viagem à China, evocando a Praça de Tianamen e a visita guiada, espécie de peregrinação, ao mausoléu do ‘Grande Timoneiro’. Relatou-nos então que, enquanto esperavam pela vez para a tal visita, a assaltou a curiosidade sobre os detalhes do massacre dos estudantes, ali ocorrido em 1989. Após alguma insistência, o guia, jovem ainda, murmurou que naquele lugar era ‘perigoso’ mencionar nomes e factos alusivos a tal acontecimento. Obviamente, o espírito do ‘Big Brother’* emergiu de novo.


Depois deste testemunho ilustrativo de como realidade e ficção dialogam intimamente, rematámos a discussão corroborando Orwell: «os livros melhores são justamente os que nos dizem aquilo que já sabemos». (p. 203)
Uma nota final a remeter para o trabalho curioso do autor sobre os ‘princípios da Novilíngua’, a língua oficial do Socing (a nova forma de socialismo descrita no romance), cunhando termos como ‘bompensar’; minipax; ‘campalegre’; ‘ventressentir’; ‘infrio’, cujo significado não é tão evidente quanto pode parecer, mas que não revelamos para que procure esta obra fundamental e com estas ou outras coordenadas, avalie a viabilidade das previsões de Orwell para 2050.


Boas Leituras!

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*No dia em que este texto foi redigido, ao averiguar o que havia sucedido em 1989, na Praça de Tianamen (Paz Celestial), não é que ao tentar visualizar, na Internet, o primeiro site sugerido, este está ‘barrado’!?! Ele há ou não há coincidências?!

Nota bibliográfica: ORWELL, George. Mil Novecentos e Quatro. Lisboa: Antígona. 2007.