quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Adoecer ou não adoecer? - eis a questão.

Elizabeth Siddal (musa/ modelo dos pintores pré- rafaelitas)


Quando escolhemos Adoecer para pretexto de mais um serão de ‘falatório literário’, o facto de ser o mais recente romance de Hélia Correia era tudo o que sabíamos sobre o dito. Hélia Correia correspondia a dois requisitos importantes: ser mulher ( critério que tem presidido às últimas escolhas bibliográficas, e qualquer semelhança com o sistema de quotas que garante a presença de mulheres na vida política do país não será pura coincidência, mas sobre machismos/ feminismos e outros ‘ismos’ discutiremos depois) e ser portuguesa ( não querendo persistir na questão do género, sublinhe-se que é a primeira escritora portuguesa a que nos dedicamos).

Às primeiras páginas este Adoecer não entusiasma, e não se sabe bem identificar a razão. Não é propriamente o início tumultuoso da narrativa feita de constantes analepses e prolepses; não é bem a genealogia dos implicados cujas relações familiares e sociais confundem a princípio; nem tampouco o uso da língua e dos tropos da retórica que a escritora utiliza no exercício ficcional. E, no fim de contas, que é como quem diz da leitura, é talvez essa estranheza que, não sendo imediatamente encantatória, acaba por nos cativar. É um romance que exige paciência, concentração, tempo, que é algo que cada vez mais escasseia, ao ponto de termos começado a ler Adoecer em Março e só três meses depois conseguido adentrarmo-nos na obra o suficiente para trocarmos opiniões.

O efeito que a leitura desta biografia romanceada sobre a figura de Lizzie Siddal tem em nós pode ser ilustrado pela seguinte citação: «As chuvas deslizaram pelas pedras como se as respeitassem. Com excepção da que assinala Lizzie Siddal. O texto que o buril afundou nela ganhou alguma qualidade orgânica. Águas e águas se depositaram, chamando musgos para a reprodução . Está deitada , na terra, a sua laje, muito verde, marcando uma diferença na família que nunca foi sua».

Assim acontece connosco, que ao darmos à obra a atenção e o tempo que nos exige (e merece) nos vamos afeiçoando à estranheza que a personagem encerra. E porque marca a diferença numa sociedade, numa irmandade artística (os Pré-Rafaelitas) e numa família, e em todos esses diferentes contextos é mais ou menos subtilmente hostilizada, sentimo-nos quase como Ruskin, obrigados a protegê-la e a admirá-la. O misterioso fascínio que Lizzie exerce sobre aqueles que a rodeiam encontra paralelismo no poder de atracção que Adoecer exerce sobre o leitor: inicialmente tímido e discreto, mas que gradualmente nos prende e se aloja qual excrescência fúngica na pedra onde as águas se depositaram.


Boas e 'doentias' leituras!