quarta-feira, 1 de julho de 2009

«Quando há autores como Mário de Carvalho, não se percebe porque se bipolariza a literatura nacional entre Lobo Antunes e Saramago» (autor desconhecido)


«Fantasia não é exactamente uma fuga da realidade.
É um modo de entendê-la.»
Loyd Alexander

Lá estivemos, pela terceira vez, na nossa mesa favorita do ‘Fronteiro-Mor’ e sob as atenções do nosso anfitrião, o sempre amável Eduardo, a degustar o prazer sentido na leitura de Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina de Mário de Carvalho.
Por norma, não é para nós – pequeno grupo de leitores que desde Março vem projectando ler – importante ter o autor como referência, nem a sua intenção como alvo das nossas asserções, no entanto, MdC merece-nos um parêntesis.
Primeiro, porque não sendo um neófito (publicou a primeira obra em 1981), só agora, e algo timidamente, começa a ser reconhecido e distinguido
[1] pelo seu talento ou, nas palavras do autor, pelo seu «trabalho de minuciosa lavra, em traiçoeira brenha», reconhecimento, quanto a nós, merecidíssimo.
Segundo, porque se deu ao trabalho de colocar as personagens desta fantasia num cenário fictício (S. Jorge do Alardo), mas de matriz alentejana e tão próximo que até situa o dito lugar no Concelho de Moura. Como leitores de Moura, ou pelo menos em Moura, esse detalhe não podia deixar-nos indiferentes.
Terceiro, e mais importante, porque é um ficcionista preocupado com o uso da língua nacional, a qual se percebe que domina, e que não se poupa a trabalhos para encontrar a «palavra certa», naquele que nos parece ser o exercício fundador de qualquer obra literária, e isso é cada vez mais raro.
Resumidamente, os dois coronéis que dão título à obra, de apelidos Bernardes e Lencastre, passam os seus dias de bem remunerada reforma nos respectivos montes alentejanos, a «taramelar» à beira da piscina que «destoa azulínea, e sobressalta, com a transparência, modernaça (…) espécie de olho-de-boi, desnaturado na paisagem» e que, curiosamente, ninguém usa, onde ninguém mergulha. Aspecto que suscita a todos um sorriso cúmplice, pois reconhecemos nos coronéis os tiques de uma certa ‘elite’ urbana em demanda da paz e sossego do Alentejo, algo muito em moda no final dos anos noventa.
Pelo romance desfila um conjunto de personagens que servem ao propósito satírico do autor, como é o caso do jovem Emanuel Elói (espécie de herói pícaro, a lembrar a personagem camiliana de Queda de um Anjo), que percorre o país a fazer demonstrações de xadrez, o que lhe proporciona encontros singulares como esse em Grudemil, com um cacique local «presidente do clube da bola, vereador da câmara, sócio honorário dos bombeiros, tem uma padaria, uma fábrica de louça, três oficinas, (…) duas casa de alterne, um bar e um bordel clandestino (…) total e absolutamente isento de impostos (…)», logo «já tem condições para se meter a sério na política». Também ao tio de Emanuel o autor concede ‘direito de antena’, para que aquele possa explanar, qual voz solidária e defensora da virilidade máscula, a sua teoria da ‘triangulação’ (recomendamos aos homens que têm propensão para a militância activa da poligamia a leitura desta ‘teoria’, pois assim, ao menos, terão uma).
Em contraponto, e como estratégia autoral para subverter o diálogo crítico e antecipar-se ao coro ‘feminista’ que certamente protestaria pelo papel dominante das personagens masculinas e, sobretudo, pela exposição da fraqueza intelectual, anímica ou moral das mulheres que pontuam no romance, o narrador desta ‘fantasia’ entrevista as mulheres dos coronéis, abrindo espaço para que elas mostrem aquilo que a possível inépcia misógina do narrador/ autor escamoteou. O diálogo com a personagem Maria das Dores é acutilante e recomenda-se, até porque é também um artifício típico do romance metaficcional, ou seja, do romance que se auto-analisa, que reflecte sobre os paradigmas do género e que procura sinalizar ao leitor que está perante um dado da imaginação, logo da fantasia de um autor.
Afinal, e como MdC reitera no seu último romance (A Sala Magenta), «procurar moldes da vida real para acontecimentos e personagens é ter em má conta a imaginação do autor». De um autor, cujas fantasias revelam a luta corpo a corpo com o código linguístico, a medida exacta nas palavras, já que nenhuma está a mais ou parece faltar, e o imenso prazer de contar histórias, que só encontra par no deleite com que o leitor as lê.


Nota: Em 2007, Mário de Carvalho escrevia o seguinte na revista Egoísta: «De todas as práticas artísticas a literatura é a mais vulnerável, porque muita gente se sente capaz não só de apreciá-la e comentá-la, como de praticá-la (…) Ninguém se inibe de avaliar um livro, mesmo não tendo lido; todos exibem muito à-vontade, as opiniões que acautelariam em se tratando de arquitectura, de pintura ou música; e correm torrentes de praticantes, ávidos de mostrar afectos tormentosos, arroubos poéticos e peculiaridades vivenciais (…) E lá virão mais declarações, mais opiniões….»
Depois disto, e em nossa defesa, resta-nos afiançar que lemos o livro e se melhor não acautelámos as nossas opiniões, foi porque não o conseguimos fazer. Só não prometemos ficar por aqui nas nossas declarações…
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[1] O romance histórico de 1994, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, é a sua obra mais premiada: Prémio de Romance e Novela APE/IPLB; Prémio Fernando Namora; Prémio Pégaso de Literatura e Prémio Literário Giuseppe Acerbi. Também o romance que nos reuniu dia 2 de Junho, Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina (2003), foi alvo do Prémio PEN Clube Português Ficção e do Grande Prémio de Literatura.
O autor foi galardoado, este mês, com o Prémio Vergílio Ferreira/ Consagração atribuído pela Universidade de Évora e pela Câmara Municipal de Gouveia.

Nota bibliográfica para as citações transcritas: CARVALHO, Mário de (2004).Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina. 3ª edição. Lisboa: Editorail Caminho.

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