quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

16 de Dezembro
JESUSALÉM , Mia Couto

«Este é o país derradeiro e vai-se chamar Jesusalém.»
(p.42)


- Os cantos –

Decidimos encerrar 2009 com a leitura de uma prosa que nos deixa sempre com o travo da poesia na ponta dos dedos, com os quais muitos de nós temos a ousadia e o atrevimento ( segundo alguns dos membros do projectoler) de marcar os cantos das páginas que igualmente nos marcam.
Jesusalém é a ‘prosa mágica’ sobre a qual conversámos no nosso último encontro, dia 16 de Dezembro. Inicialmente, também o mais recente romance de Mia Couto sofreu ‘tratos de polé’ nos cantos, mas tornou-se rapidamente evidente que quase todas as páginas do livro seriam submetidas a tal ‘injúria’, pelo que entre um post-it e outro; de sublinhado em sublinhado e já com a ajuda das pratas dos mon-chéris adventícios, fomos destacando os momentos mais memoráveis de Jesusalém, que à semelhança dos seus antecessores na lista bibliográfica do respectivo autor, tem no reinventar lírico da língua portuguesa a sua personagem principal.

- As citações –

Pese embora seja muito redutor tomar a parte pelo todo, e correndo o risco de passar a ideia de que esta obra de Mia Couto mais não é do que uma colectânea de clichés (seria uma conclusão muito injusta e precipitada), partilhamos convosco os ‘cantos dobrados’:
p. 40 - «Esperas, É isso que a estrada traz. E são as esperas que nos fazem envelhecer.»
p. 62 - «Mulheres são como ilhas: sempre longe, mas ofuscando todo o mar em redor.»
p. 143 - «É isso que essas negras têm que nunca poderemos ter: elas são sempre o corpo inteiro. (…) todo o seu corpo é mulher, todo o seu tempo é feminino. E nós, brancas, vivemos numa estranha transumância: ora somos alma, ora somos corpo. Acedemos ao pecado para fugir do inferno. Aspiramos à asa do desejo para, depois, tombarmos sob o peso da culpa.»
p. 146 - «Uma terra é nossa como uma pessoa nos pode pertencer: sem dela nunca tomarmos posse.»
p. 151 - «Os homens não olham as mulheres que acabaram de amar porque têm medo. Têm medo do que podem encontrar no fundo dos olhos delas.»
p.255 – «Porém, se temos que viver na mentira que seja na nossa própria mentira (…) o mundo termina quando já não somos capazes de amar (…) Eis a lição que aprendi em Jesusalém: a vida não foi feita para ser curta e breve. E o mundo não foi feito para ter medida.»

Outras citações seriam mais ilustrativas da peculiar apropriação que Mia Couto faz do código linguístico (desde a escolha dos nomes das personagens Mwanito, afinador de silêncios; Vitalício Silvestre; o Tio Aproximado; Zacarias Kalash; a jumenta Jezibela; passando por tantos outros ‘achados’conseguidos pela mestria com que o autor joga com as palavras), mas suspeito que o género de quem escrevinha estas linhas influenciou a escolha.

- As mulheres-

Por falar em género, alguma crítica tem evidenciado que este é um romance sobre mulheres; diríamos que se trata de uma espécie de tributo que sucede a dois níveis: por um lado, aquele que é prestado pelo próprio autor a mulheres poetas que inspiram cada um dos capítulos – Sophia de Mello Breyner Andresen; Hilda Hilst; Adélia Prado e Alejandra Pizarnik - , por outro lado, aquele que o próprio enredo tece ao colocar a mulher no lugar de ‘ilha’ (um dos poemas citados refere esse topos clássico de associar a figura feminina à condição de ilha), distante, isolada, mas sempre objectivo da viagem dos homens de Jesusalém: iniciática para uns; de esquecimento e penitência para outros. Uns a quererem alcançá-la, outros na viagem de retorno, a tentar fugir dela. Será tal dupla empresa – alcançar/ esquecer a mulher (ou a ‘ilha’) – alguma vez conseguida? Parece ser esta a questão síntese que a obra coloca, antecipada até pela citação de Herman Hesse que descerra o pano sobre Jesusalém:
«Toda a história do mundo não é mais
que um livro de imagens reflectindo
o mais violento e mais cego
dos desejos humanos: o desejo de esquecer.»

- Nota de rodapé –
Não sabemos se há alguma relação misteriosa entre as palavras e se elas se ‘contaminam umas às outras’, ou se, simplesmente, se trata de uma coincidência, mas o que é facto é que , em Setembro, quando listámos as obras que projectávamos ler nos meses sucessivos, e ainda sem conhecermos a obra de Mia Couto, optámos por dedicar Janeiro à leitura de Siddhartha, precisamente da autoria de… Herman Hesse, o autor da citação anterior!
Deixamos, então, como T.P.C., a reflexão sobre os laços que as palavras tecem e os sempre renovados votos de boas leituras, neste caso do romance de maturação dos artifícios criativos de Mia Couto.
«A poesia é uma doença mortal.» (p. 151)
Nota bibliográfica: COUTO, Mia. 2009. Jesusalém. Lisboa: Caminho.

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