domingo, 23 de maio de 2010

Siddartha, Herman Hesse

3 de Fevereiro


É estranho escrever sobre um livro que se quer ‘rio’, volvidos três meses do serão dedicado à sua leitura. Poderão as águas do mesmo rio banhar-nos duas vezes? Veremos… E se não conseguir reportar fidedignamente o clima daquele serão de Fevereiro, nem reproduzir as opiniões que genericamente foram partilhadas sobre esta obra de Hesse, é porque não soube escutar, pois tal como diria Heraclito que tão a propósito de rios é convidado para compor o ambiente, «se não sabe escutar, não sabe falar».


Não temos a pretensão de termos sabido ‘escutar’ Siddartha, por isso, não alvitramos que lição há a tirar desta obra (até porque cada um tira de cada livro senão o que quer, o que pode) que, em subtítulo, se apresenta como ‘um poema indiano’.
Concordamos que é meritória de tal título, dado o trabalho poético encetado pelo autor sobre princípios filosóficos e éticos que , como tal, tornam a obra num ícone literário transversal às diferentes gerações de leitores, unidas pela identificação com o anelo de Siddartha: a procura de respostas às dúvidas existenciais que assaltam o homem desde sempre.


Resumidamente, Siddartha é um jovem brâmane que decide abandonar o lar
paterno à procura de viver a vida que, mantendo-se em casa, só aprenderia nos livros.

Dúvida 1: A vida será como a que vem descrita nos romances?
Estamos em crer, com base num ‘saber de experiência feito’, que a realidade supera a ficção, mas esta discussão sobre se é a arte que imita a vida ou vice-versa é antiga e, se até hoje irresolúvel, por nós assim continuará.

Dúvida 2: Podemos prescindir dos ‘mestres’? Haverá de facto um ‘deus’ dentro de nós?
Aqui, o ‘poema indiano’ é peremptório em nos afiançar que sim, aliás, essa é a tese da obra. Assim, podemos ler: «Tens dentro de ti, em todos os que se transformam, um Buda oculto para venerar», e justifica a sua pouca fé nas doutrinas: «Posso amar uma pedra (…) mas não posso amar palavras. É por isso que não aprecio as doutrinas, não têm dureza ou moleza, não têm cores, não têm arestas, não têm cheiro, não têm gosto, nada têm senão palavras. Talvez seja isto que te impede de encontrares a paz , talvez sejam as palavras em excesso.»

Alguns dos leitores presentes não estiveram em total sintonia com esta ideia de que cada um de nós encerra um deus, que em si mesmo deve procurar consolo e orientação, de si mesmo assacar responsabilidades quer pelo cosmos quer pelo caos que as suas decisões causam. Alguém frisou que por incapacidade, inércia ou pelo hábito herdado de geração em geração, há muita gente, a maioria até, que não encontra em si essa força, esse rio impetuoso que «aspira a muitos objectivos, à queda de água, ao lago, aos rápidos, ao mar, e todos os objectivos eram alcançados e a todos eles se seguia um novo objectivo».
Toda essa gente necessita de se inspirada. Por isso, as doutrinas, os mestres, os ‘gurus’ e demais ‘iluminados’ ressurgirão ao longo dos tempos como relicário da esperança e da fé dos homens, ao fim e ao cabo, em si mesmos, ainda que tomando uma ínfima parte pelo todo, ainda que disso pouco se apercebam.
No entanto, abrimos espaço para o contraditório citando Siddartha: «Para cada verdade, o contrário é igualmente verdade.»

Dúvida 3: Até onde podemos chegar seguindo o ‘rio’ que corre dentro de nós?
De uma forma muito sumário e simplista, chegaremos até nós mesmos, ao nosso âmago. Seguirmos o rio é a viagem que nos leva de nós a nós e, por conseguinte, aos outros. O mesmo rio que escuta, é o que nos ensina a escutar, a ter paciência e que nos ensina o ‘silêncio’(a lembrar-nos essa personagem singular do romance de Mia Couto – Mwanito, o Afinador de silêncios, e talvez agora se perceba melhor porque terá Mia convocado H. Hesse no intróito do seu Jesusalém). No rio escutavam-se todas as vozes fundirem-se numa só; no rio estava o ‘mundo’, a totalidade.

Síntese - Enquanto procuras nunca conseguirás encontrar:

«Quando alguém procura (…) pode acontecer que os seus olhos vejam apenas a coisa que ele procura (…) Procurar significa ter um objectivo. Mas encontrar significa ser livre, manter-se aberto, não ter objectivos.»

Erguemos o nosso cálice a essa liberdade. E fazemos votos para que também nós, que por aqui vamos projectando leituras, possamos encontrar nas palavras dos outros aquelas com as quais consigamos ser ‘rio’, e que a ‘nossa’ grandeza não se veja no «falar ou no pensar, apenas no agir, no viver».

Que os nossos olhos vejam para lá do que procuram…



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